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Poliana e a crise: até que a queda do consumo tem seus benefícios

Há vezes em que o otimismo beira a irresponsabilidade. Em outras, aquela chatíssima Poliana ataca, querendo ver um lado positivo em tudo. O mundo se acabando e a pessoa diz… “mas, em compensação”.

Por outro lado, ninguém duvida que os tempos de dificuldades sempre serviram muito bem à evolução. A regra “carro apertado é que canta” sempre se cumpre e a história está aí, cheia de exemplos. Veja, o salto tecnológico que a Segunda Guerra trouxe!

Então, nesse sentido, dar uma de Poliana no momento e olhar o Brasil com algum otimismo, não chega a ser uma sandice. Veja: diante da crise, o consumo está caindo e, junto com ele, também está caindo a inadimplência!

Ok! Queda no consumo é sinal de economia doente. Mas, será que o momento não é de queda o consumismo e de adoção de formas de consumo mais responsáveis?

Conserto

Não faz muito tempo, era muito normal mandar consertar as coisas. Aliás, quando a evolução tecnológica não era tão acelerada quanto hoje, era comum encontramos equipamentos recondicionados, que voltavam ao mercado como novos para ainda servirem por anos e anos de utilidade. Com o consumismo, muita coisa que estraga, por menor que seja o defeito, acaba sendo trocada por um produto novo.

Meu pai criou os filhos graças a esse mercado de consertos e de usados. Ele foi dono de uma oficina de máquinas de escrever e de calcular que funcionava junto a uma loja de máquinas usadas, que tinham saída tão boa quanto as novas, que ele também tinha em estoque. A lógica era bastante simples: ele comprava máquinas usadas, recondicionava, tornando-as como novas, e vendia.

A oficina também funcionava a todo vapor. Como a evolução dos equipamentos não era tão rápida, justificava bastante que eles fossem consertados, uma vez que o valor e a utilidade que tinham eram reais e permaneciam por longo tempo.

Mas, esse mercado acabou, cedendo lugar à voracidade da informática que evolui a cada dia, tornado obsoleto amanhã aquilo que compramos ontem. Seguindo a mesma lógica, produtos surgiram para se tornarem obsoletos pouco depois do lançamento, ao mesmo tempo em que a propaganda impulsiona o consumo a qualquer custo.

Réplicas modificadas

É certo que a tecnologia é algo espetacular e a vontade de adquirir produtos revolucionários, que oferecem novas funcionalidades e criam novas necessidades, move as pessoas no sentido de compra-los. Mas, até que ponto um aparelho novo é de fato revolucionários e até que ponto ele vale o que custa?

Claro: do primeiro iPhone até o 7, que está na bica de ser lançado, muita coisa mudou. Mas, entre o 6 e o 7, houve algum salto significativo que justifique novo investimento?

Na verdade, isso não interessa. Mesmo que as pessoas saibam que, basicamente, o que estão comprando replica a maior parte daquilo que já tinham com os equipamentos anteriores, qualquer modificação, por menor que seja, na cabeça delas justifica a troca.

“Pobre no avião”

Essa doença consumista se encravou de vez no Brasil justamente nos tempos em que as mudanças positivas na economia aconteceram, lá nos anos 2000. Coincidência ou não, em grande medida, esse consumismo doentio deu muito poder a quem não merecia e nos trouxe para a situação atual.

Afinal, a vontade de ter um país mais moderno, equiparado aos das economias desenvolvidas era tremenda. Enquanto, no século passado, ter um All Star importado vindo do Paraguai era um luxo que alguns se esforçavam para ter acesso, no novo milênio, ficou muito mais fácil comprar um Nike “da hora”. Nessa onda, viajar de avião passou a ser um símbolo de ascensão social dos mais pobres e quem governava o país pôs muitas fichas nessa falsa impressão de prosperidade, criando na população carente de status um conceito desvirtuado do que significa, de verdade, melhorar de vida.

Assim, mesmo sem laje na casa, impulsionado pela propaganda e condicionado pelo desejo e pela pressão social, o sujeito não abria mão da “TV de tela fininha” com 42 polegadas, dividida em 48 parcelas. A boca não estava tão sadia, os dentes faltavam aqui e ali, mas o carro zero, isento de IPI, estava na porta, com a indústria automobilística soltando foguetes. O qualidade do ensino nacional afundava, mas a propaganda do acesso fácil ao ensino suplantava todas as deficiências e, mesmo com dificuldade para escrever e entender um texto simples, o cidadão avançava (e ainda avança) na faculdade, saindo de lá com um diploma que só serve para aumentar a ilusão de que a pessoa é, de fato, instruída.

Quem não se lembra daquela senhora beneficiária do Bolsa Família que, revoltada, deu declarações na televisão achincalhando o programa do Governo Federal que, segundo ela, era uma mixaria. “Só a calça que a minha filha usa custa R$300!”, ela disse, com a razão respaldada pelos princípios que a fizeram crer que eram os ideais.

Choque de realidade

Mas, a realidade prevaleceu e agora sabemos, de fato, o tamanho do Brasil. Após o ufanismo atropelar o patriotismo, querendo que acreditássemos que, com o petróleo do pré-sal, estávamos a um passo de nos tornarmos emiradenses (que é como o jornalista Sérgio Rodrigues diz que deve ser denominado quem nasce nos Emirados Árabes), estamos vivendo no Brasil real.

Como acontece com a moça que abusa da maquiagem pra fingir uma beleza que não tem de verdade, a festa acabou, o disfarce borrou e as cicatrizes e espinhas estão de novo à mostra.

Voltando à vaca fria

Com isso, voltando ao início desse texto, o consumo está caindo, o que, pra mim, é um ótimo sinal. Considerando que o que vejo, em grande medida, é a queda no consumo desnecessário ou a readequação de despesas que podem ser reduzidas ou mesmo eliminadas, à força, nosso povo parece que está se educando. Os carros estão sendo deixados na garagem, o que é muito bom. Os desperdícios estão sendo reduzidos, o que é sensacional. Os produtos estão sendo consertados e recebendo vida mais longa e ninguém mais tem vergonha de falar sobre isso. Afinal, é necessário!

Melhor ainda é que, junto a essa tomada de consciência na marra, a inadimplência está caindo. As instituições de crédito e o Poder Público estão buscando meios para que as pessoas regularizem suas dívidas e muitas têm aproveitado a oportunidade para limpar o nome. O entendimento de que, em tempos ruins, ter a barra limpa na praça é uma necessidade tem feito com que ela se esforcem para viver com o cinto apertado, mas com a credibilidade reabilitada.

Fica então a expectativa otimista de que, após a tempestade, surja uma população mais consciente da verdadeira condição do nosso país e que seja capaz de compreender que o que precisamos com maior urgência não é de tênis de marca, de TV de plasma, de viajar de avião ou de calça jeans da moda, o que muitos, por direito até, gostariam de usufruir. Porém, como sempre foi, nosso país continua carente de serviços básicos, como os da educação e da saúde, sem os quais nenhum luxo compensa.

Como bônus extra, além da diminuição do consumo nos colocar com os pés no chão, há os benefícios ambientais das emissões menores e do alongamento da vida útil de produtos.

Ou seja: Poliana tem razão, de novo. Há sempre uma compensação.